sexta-feira, 16 de junho de 2017

O PROJETO ANTI-METAFÍSICO DE CARNAP

AULA: 22/06/17

TAHKO, T. E. Carnap's Anti-metaphysical Project. In: The necessity of metaphysics. PHD. Thesis (Department of Philosophy) – Durham University, 2008, pp.45-55. (Tradução: Me. Victor Hugo de Oliveira Marques)


O PROJETO ANTI-METAFÍSICO DE CARNAP[1]


É bem natural mover-se de Kant a Carnap, pois em Carnap ao menos, indiscutivelmente, podemos ver a culminação da influência anti-metafísica de Kant. O projeto anti-metafísico de Carnap, o qual é proximamente conectado com o círculo de Viena e, ultimamente, ao não mais popular verificacionismo, é talvez o projeto anti-metafísico mais a influente do século XX.  A ideia fundamental por trás da atitude hostil do positivismo lógico de Carnap para a metafísica é bem clara: somente uma informação verificável, empírica, é relevante, o resto é crendice. É claro, o projeto de Carnap foi, de fato, bem mais sofisticado do que isto. Felizmente, Carnap ao menos explica o que ele quer dizer por ‘metafísica’, explicitamente:

Chamarei de metafísica todas aquelas proposições que alegam representar conhecimento sobre alguma coisa que está além ou aquém de toda experiência, i. é, sobre a real essência das coisas, sobre as próprias coisas, o absoluto enquanto tal (Carnap 1935:461).

Talvez esta definição convenha aproximadamente a um tipo de metafísica, cujos três metafísicos que Carnap menciona – Spinoza, Schelling e Hegel – estejam comprometidos (ibid). Ocorre que, não sou muito satisfeito com esta compreensão metafísica, isto é óbvio desde os capítulos anteriores.  No entanto, a questão que permanece é se o projeto de Carnap causou problemas para a metafísica tal como eu compreendo. Certamente, penso que o conhecimento a priori é crucial para a metafísica, e, como ele é subjacente a toda a experiência, eu devo imaginar que Carnap também não apreciasse a metafísica no sentido aristotélico. Isto, presumivelmente, inclui dizer a respeito de essências e coisas em si mesmas, embora estas noções fossem necessárias para clarificar, antes, qualquer conclusão que se pode delinear. Parece, de qualquer modo, que a concepção de ‘alem ou aquém de toda experiência’, no sentido de Carnap, é bem mais forte do que a noção de a priori que associei com metafísica. Para clarificar isto, vejamos outra passagem:

A decisão sobre a questão central da metafísica, i. é, se ela é significativa em tudo e possui uma existência verdadeira e, portanto, seria uma ciência, aparentemente depende inteiramente do que ela quer dizer por ‘metafísica’ (Carnap 1967: 295)

De fato, isto é verdade. É também ainda verdadeiro que ‘nos dias de hoje’ não há unanimidade quanto a este ponto (ibid), como Carnap acrescenta momentos depois. Carnap segue para refutar a visão de que a metafísica é uma ciência conceitual, e, seguindo Bergson, acaba usando o nome ‘metafísica’ para o não-racional, o processo intuitivo. Isto, é claro, não é de todo similar ao modo como tenho caracterizado a metafísica, mas, novamente, minha concepção de metafísica também não se encaixaria no que Carnap chama  de ciência.  Assim, parece que Carnap nega certa ligação entre seu positivismo lógico estrito e a ulterior não-racional metafísica. Para esta ligação, agora que o nome ‘metafísica’ está em questão, não posso pensar se há um nome melhor do que o aristotélico, no sentido que demonstrei no primeiro capítulo. Incidentalmente, Carnap não diz muito sobre Aristóteles, mas ele empilha os pré-socráticos a Platão com Spinoza, Schelling e Hegel.

Alguns dos argumentos de Carnap contra a metafísica são tão opinativos que eu duvido que eles trabalhem contra qualquer espécie de qualquer metafísica:

Os Metafísicos não podem impedir de tornar suas proposições não-verificáveis, porque se eles as tornam verificáveis, a decisão sobre a verdade ou falsidade de suas doutrinas passa a depender da experiência e, com efeito, pertenceriam à região da ciência empírica. Esta conseqüência deve ser impedida porque eles pretendem ensinar o conhecimento que é de um nível mais alto do que aquele da ciência empírica. Assim eles são compelidos a cortar toda a conexão entre suas proposições e a experiência; e precisamente por isto, o procedimento deles os priva de qualquer sentido (Carnap 1935:462).

Eu não sei quais filósofos Carnap têm em mente aqui, mas é difícil de crer que, mesmo aqueles que ele menciona, eles seriam tão desonestos como ele alega. É claro para mim que qualquer filósofo respeitável ficaria bem feliz em acolher resultados empíricos que apoiassem suas teorias. E é óbvio que ele teria também de acolher resultados que falsificariam sua teoria. Talvez seja verdadeiro, no entanto, que as teorias dos metafísicos que Carnap menciona sejam, senão impossíveis, ao menos bem difícil de verificar ou falsificar. Mas alegar que isto é devido a estes filósofos estarem receosos de que suas doutrinas quedem no reino das ciências empíricas, isto é um bocado absurdo. É óbvio que isto faz sentido para Carnap, pois ele está tentando por a metafísica junto com a poesia e a arte. Não obstante, é claro que este aspecto do projeto anti-metafísico de Carnap não tem uma influência sobre o tipo de metafísica que eu estou defendendo.

A originalidade do projeto de Carnap é claro a algures. Primeiro de tudo, ele distingue uma representativa e uma expressiva função da linguagem. A função representativa da linguagem é a função que a ciência empírica e a lógica usam. A função representativa da linguagem consiste de sentenças que declaram certa proposição. A função expressiva da linguagem, obviamente, inclui sentenças representativas tão bem que elas também expressam alguma coisa, mas, conforme Carnap, há uma vasta quantidade de sentenças que são somente expressivas, vazias de qualquer valor de verdade. É bem fácil de ver que poesias e outras artes pertencem a este grupo e, no sentido de Carnap, também a metafísica. Sua hostilidade para com a metafísica, porém, é devido a seu alegado caráter enganoso, pois a metafísica oferece uma ilusão do conhecimento: ela alega afirmar alguma coisa quando ela apenas expressa, ou seja, oferece a falsa impressão de declarar uma proposição (Carnap 1935: 465-467).

Este remodelamento pode ser contrastado com o posterior ensaio de Carnap: “Empirismo, Semântica e Ontologia”. Notavelmente, nós estamos interessados nas estruturas lingüísticas de Carnap. Sempre que desejamos falar de um novo tipo de entidade, ele diz, devemos construir uma nova estrutura lingüística (Carnap 1956: 14). Depois da introdução desta nova estrutura, um novo conjunto de papeis, nós devemos distinguir as questões dentro desta estrutura – questões internas – das questões que se referem ao sistema completo de entidades – questões externas. O traço distintivo das questões internas é que elas podem ser respondidas com a ajuda da investigação empírica: ‘O conceito de realidade que ocorre nestas questões internas é um conceito empírico, científico e não-metafísico’ (ibid). Terei uma ou duas coisas a dizer sobre esta citação posteriormente, mas, por agora, é suficiente dizer que as questões internas são obviamente significativas por serem questões ‘científicas’. Ao passo que questões externas, questões sobre o mundo em si mesmo e sua realidade, são questões de filosofia, ou seja, metafísicas.

Carnap oferece alguns exemplos das implicações disto. Com respeito ao mundo das coisas, isto é, os objetos físicos no mundo espaço-temporal, nós somos capaz de responder todas as espécies de questões empíricas até onde a estrutura linguística apropriada é aceita. O processo de aceitação depende de fatores como ‘eficiência, fecundidade, e simplicidade’ (Carnap 1956: 15), e não, como se pode ver, sobre a correspondência com a realidade. Qualquer questão externa que convém à realidade física espaço-temporal é, conforme Carnap, é uma pseudo-questão. Questões concernentes a algo como números, porém, são um pouco mais complicadas, ou, ao menos parecem ser, pois o status ontológico dos números é discutível. Ainda, para Carnap, não há tais questões como ‘O que é o status ontológico do número?’, pois ele pensa que isto é também uma questão externa e não pode ser dada uma formulação na linguagem científica (ibid).

O quadro que carnap apresenta para nós é claro: nós podemos apenas operar dentro da estrutura da ciência empírica (e análise lógica), qualquer questões externas a esta estrutura é pseudo-questão. Assim, a introdução de uma nova estrutura linguística não requer qualquer resposta ontológica às entidades que ela convém. Isto é porque Carnap pensa que a introdução de uma nova estrutura não faz qualquer assertiva sobre a realidade. A partir disto, Carnap delineia sua bem conhecida conclusão: nós deveríamos ser tolerantes com respeito a diferentes estruturas linguísticas. É fácil concordar com este ponto, porém alegar que estas diferentes estruturas não fazem qualquer asserção sobre a realidade é, de fato, estranho, por isto não há como usá-las.

Além do mais, deveríamos olhar mais de perto a noção de Carnap de realidade: a empírica, científica e não-metafísica realidade. Que tipo de realidade é esta? Carnap é bem feliz ao aceitar que a ciência empírica é envolvida com realidade em algum sentido – por exemplo, podemos dizer que unicórnios não são reais. Ademais, as questões envolvidas com a ciência empírica são presumíveis questões internas. Porém, seria peculiar se, ele diz, os físicos concordassem com a alegação de Carnap que questões sobre a realidade do espaço e do tempo físicos fossem pseudo-questões. Realmente, em um sentido muito claro, cientistas pensam que a questão central de suas disciplinas são realidades e que eles fazem asserções substanciais sobre a natureza desta realidade. Como Carnap ressalta, se estas questões são tomadas como internas, então elas são ‘analíticas e triviais’, qualquer outra compreensão destas questões torna-as, quanto mais, pragmáticas (Carnap 1956: 17). Mas isto como poderia ser tudo que há para ela?

Quando nos perguntamos se alguma coisa é real ou não, nós justamente queremos saber se tais e tais entidades existem. Quando os físicos introduzem certas partículas novas, existência que parece ser apoiada pela, eles dizem, evidência empírica indireta, pois nunca havia, no entanto, sido vista; perguntamos: é ou não real esta partícula? É difícil ver como isto poderia ser uma questão interna, e claramente ela não é uma pseudo-questão que algum dia talvez pudéssemos verificar ou falsificar a realidade daquela partícula. O mesmo aplica a muitas das questões que Carnap alega serem externas, exceto, talvez, a questão sobre objetos abstratos, tais como números e sua realidade. O problema é que Carnap aplica a mesma ideia tanto para questões que dizem respeito a objetos abstratos quanto a questões que dizem respeito a objetos concretos, embora sejam duas questões diferentes.

Parece-me que Carnap está fazendo um “free lunch” aqui. Ele nega todas as falas sobre questões ontológicas, mas toma com satisfação a ciência empírica por garantida. Isto talvez seja a atitude de um não cuidadoso filósofo, mas um filósofo certamente veria que há sérias questões ontológicas a resolver, antes de acolhermos a ciência empírica de braços abertos. De fato, por que haveria demorado mais de dois mil anos para encontrar o fundamento metafísico para a ciência?

Obviamente, Carnap não é ignorante a respeito deste tipo de discussão e ele tem alguma coisa a mais a dizer. Carnap discute a respeito da ‘realidade empírica’, a qual concerne, não surpreendentemente, objetos físicos (Carnap 1967: 273ff). Esta noção de realidade é suposta para ser capaz de separar objetos reais físicos de não reais, tais como sonhos ou invenções. Porém, ele reconhece que a realidade não é exaurida com objetos físicos: há também o que ele chama de objetos psicológicos e objetos culturais, aos quais também envolvem reais e não reais objetos. Os detalhes desta tese não nos interessam, interessa-nos apenas notar que Carnap continua no mesmo problema quando tenta determinar que os objetos sejam reais ou não, quando ele tenta fundá-los todos no uso linguístico e na convenção, que, é claro, torna-os arbitrários, como Carnap mesmo nota (Carnap 1967: 280). Um dos exemplos de Carnap dos casos problemáticos concernentes aos objetos físicos é a consistência coletiva da ‘presente vegetação da Europa Central’ (Carnap 1967:280). É bem claro que qualquer investigação sobre a realidade de um objeto como este será bem problemática se tudo que temos para recorrer é o uso lingüístico.

Vamos agora retornar ao “problema metafísico da realidade” e ver o que Carnap tem a dizer sobre ele (Carnap 1967: 281ff). Carnap compreende a ‘realidade metafísica’ como segue: alguma coisa é real no sentido metafísico se ela existe independente da consciência. Três escolas filosóficas surgem a partir dos diferentes modos de acesso a questão: realismo, idealismo e fenomenalismo. Carnap segue examinando se alguma destas três visões é compatível com sua concepção de realidade empírica, sua hipótese é que todas elas pertencem a uma não racional disciplina que ele chama: metafísica. Porém, ele admite, inicialmente, que parece que seus objetos reais empiricamente teriam de ser designados independentes da consciência, pois eles não dependem da vontade de alguém. Mas Carnap refuta esta linha de raciocínio sobre a base que se algo se mantém como um corpo físico na mão de alguém, ele muda se um ato apropriado da vontade é efetuado. Isto aparentemente quer dizer alguma coisa como deixar cair o objeto ou jogá-lo contra uma parede. Bem, isto é, de fato, correto, mas claramente este contra-exemplo não atinge bem a noção de independente da consciência, pois a mudança que ocorre quando um objeto físico é, digamos, deixado cair e esmagado, ocorre porque há certamente outros objetos físicos presentes e que causam este acontecimento, a saber, a mão que deixa cair o objeto e o fundo que ele atinge. Assim, o que seria necessário para refutar esta consideração é um ato da vontade que causa uma mudança sem ser beneficiada por outro objeto, nem mesmo a mão que está segurando o objeto original. Dado, isto causa alguns problemas a mais, pois é presumível um ato de vontade que move a mão e tudo mais, mas este é exatamente o ponto: nós pomos a termo uma discussão altamente detalhada sobre a noção metafísica de realidade e o que a envolve. Não há dúvida que esta discussão deveria tomar nos dentro de uma profunda filosofia da mente enquanto tal.

Um ponto importante que Carnap faz é que nenhuma das três escolas – realismo, idealismo ou fenomenalismo – estão em contradição com o que ele chama de construção teórica, i. é, realidade empírica. Porém, não me satisfaço em ver como isto é suposto para apoiar a visão de Carnap, pois a consideração da realidade empírica que ele apresentará é exatamente o que estas diferentes escolas estão tentando explicar. Em outras palavras, a realidade empírica é mais ou menos o ponto de partida, e se as diferentes escolas estariam em contradição com esta, então elas claramente falharam. É claro que estas diferentes escolas se contradizem uma as outras e Carnap nota isto muito bem. Ele pensa que não há um acordo epistemológico: elas estão puramente no reino metafísico (Carnap 1967:286). De fato, isto é algo que eu praticamente concordo, pois encontro, para um número de juízos, que a epistemologia é também amiúde feita sem reconhecer o empenho metafísico no seu fundamento. Mas, é claro que, eu não concordo com a alegação que a metafísica não é racional. Considera-se o que Carnap permite no reino da epistemologia:

Em última instância, todo conhecimento volta para a experiência, a qual é relatada por um outro, conectada e sintetizada; assim há um progresso lógico que leva, primeiro a várias entidades de minha consciência, então aos objetos físicos, ademais, com o auxílio do último, para o fenômeno da consciência de outros sujeitos, i. é, para heteropsicológico  e por meio da mediação do heteropsicológico para os objetos culturais. Mas isto é a teoria do conhecimento na sua completude (Carnap 1967: 286, itálico nosso).

Isto soa muito suspeito, e minha suspeita nasce exponencialmente quando Carnap admite que aqui talvez pareça ser realismo no fundo de um procedimento prático das ciências empíricas (ibid). Nesta diferença, Carnap diz que devemos ter cuidado de distinguir o uso linguístico e a assertiva atual, pois ela é o primeiro tipo de realismo que é envolvida com a física e tal. Isto é dificilmente convincente; ver novamente a passagem acima citada. Não parece que há um salto significativo entre “as várias entidades de minha consciência” e “objetos físicos”? Haveria, pois isto é exatamente o salto que é usualmente questionado em oposição ao realismo. E isto, de fato, é o “free lunch” ontológico que eu penso que Carnap está tentado ter: receber coisas boas do realismo sem fazer qualquer compromisso com os fundamentos metafísicos. Realismo pode dificilmente ser fundado no uso linguístico e na convenção. Ademais, Carnap insite que a metafísica é uma disciplina não-racional e que a disputa entre realismo, idealismo e fenomenalismo assim não pode ser resolvida por sentido racional, mas me parece que Carnap mesmo está tentando dar um argumento racional para o realismo, embora, deixando muito a desejar, o funda no uso linguístico e faz o caso um bocado menos convincente. Assim, se ele quer ou não, Carnap é de algum modo um metafísico – do tipo aristotélico.



[1] [1] Tradução para fins didáticos utilizado na disciplina de Problemas Metafísicos I: Ontologia na UCDB (2017). (N. do T.)

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