quinta-feira, 20 de julho de 2017

TEORIA DO CONHECIMENTO E EPISTEMOLOGIA

É muito comum nos estudos do conhecimento o uso indiscriminado de “Teoria do Conhecimento” e “Epistemologia”, como afirma Dutra (2010, p.09): “Epistemologia é o termo que mais frequentemente empregamos hoje para nos referirmos à ‘teoria do conhecimento’ – a disciplina tradicional dos currículos dos cursos de filosofia”. Outros nomes também são passíveis de serem encontrados, em especial, em manuais mais antigos, como é o caso do clássico “Teoria do Conhecimento (Gnosiologia e Criteriologia)”. Contudo, haveria uma distinção possível? Sim há.

Classicamente, Santos (1960, p.32, grifo nosso) argumenta: “... a Criteriologia seria a própria Teoria do Conhecimento ou Gnosiologia, na parte em que aprecia o valor dos nossos conhecimentos, quando ela enfrenta o tema principal e final, que é a verdade”; já a Teoria do Conhecimento ou Gnosiologia, propriamente, seria “um saber teórico do conhecimento, ponto de partida para o estudo da Metafísica, em seus diversos aspectos” (SANTOS, 1960, p.31). Em outras palavras, Gnosiologia, ou, que é o mesmo, Teoria do Conhecimento, por serem os termos mais antigos, são usados para estabelecer o campo do conhecimento que reflete todas as relações advindas do conhecimento, enquanto que Criteriologia, por ser mais recente, tem uma preocupação mais pontual e específica, que é a relação entre o conhecimento e a verdade. 

Com efeito, o que Santos não explica é que o termo “Gnoséologie”, cunhando pelo wolffiano Baumgarten, teve mais aceitação na Itália do que na Alemanha, preferindo, estes últimos, o termo do kantiano Reinhold: “Erkenntnistheorie”, ou seja, Teoria do Conhecimento. Por outro lado, o termo Epistemologia, apesar de remeter a uma origem muito antiga (do léxico episteme já conhecido pela Grécia antiga), tem um sentido bastante recente (ABBAGNANO, 2007). De acordo com Blanché (1975), a expressão, no sentido como conhecemos hoje, aparece pela primeira vez no suplemento Larousse ilustrado[1] em 1906. Em contrapartida, Dutra (2010) afirma que o termo “epistemology”, em inglês, é anterior a esta data, tendo sido introduzido no século XIX pelo filósofo escocês James F. Ferrier. Para a escola francesa, o termo épistémologie era usado, com mais frequência, para se referir à “filosofia da ciência”; mas hoje, com a influência exercida pela escola inglesa, o termo acabou também se referindo à teoria do conhecimento.

Para os ingleses, o que se compreende por epistemologia são duas situações: [1] a da justificação da veracidade das sentenças e [2] do processo de aquisição do conhecimento. Estes dois momentos são respectivamente denominados de epistemologias da justificação e da investigação, sendo que o primeiro trata dos processos lógicos da cognição e o segundo dos processos psicológicos da cognição. Seguindo Blanché (1975), para aquelas correntes em que não há conhecimento válido que não o científico, como é o caso das teorias advindas do positivismo, teoria do conhecimento e epistemologia se confundem e realmente devem ser tidas por sinônimas, uma vez que toda teoria do conhecimento só a é enquanto teoria do conhecimento científico. De outro modo ainda, há aqueles que fazem uso da epistemologia como filosofia da ciência ou mesmo parte da filosofia da ciência, ressaltando, nesta perspectiva, sua relação com a filosofia. Nesse caso, a epistemologia seria uma reflexão filosófica sobre os princípios, métodos e fundamentos da ciência em geral, não se restringindo apenas à sua possibilidade cognoscitiva.

Com efeito, se tomarmos a distinção feita por Zilles (2008) temos: epistemologia ou teoria da ciência é “o estudo dos princípios, dos critérios, dos processos e da metodologia das ciências” (ZILLES, 2008, p.34), que hoje, praticamente, segundo este autor, se restringe a uma espécie de lógica aplicada. Neste sentido, seja empírico ou não, as teorias das ciências já pressupõem o conhecimento e a formulação de que este é verdadeiro ou falso. Enquanto que a teoria do conhecimento, não pressupondo o conhecimento, não é uma ciência empírica, mas filosófica. Ademais, prossegue Zilles (2008), a teoria do conhecimento não é metafísica – ainda que, segundo Santos (1960, p.31), ela seja “o ponto de partida para o estudo da Metafísica”[2]. Isso significa que, rigorosamente, a teoria do conhecimento seria “ciência não-empírica do empírico” (ZILLES, 2008, p.37); ou, como vai dizer Santos (1960, p.31): “é um saber teórico do conhecimento”; ou ainda nos termos de Hessen (2003, p.13) “teoria material da ciência ou como teoria dos princípios materiais do conhecimento humano”.

Para nós, contrariando as filosofias inglesas e positivistas e nos aproximando da filosofia francesa bem como de toda tradição filosófica, o que se considera propriamente por “epistemologia” é aquela teoria que trata do conhecimento especificadamente científico. A partir dessa especificação, a epistemologia se distingue da “teoria do conhecimento” e ou “gnosiologia” na medida em que esta se preocupa com a possibilidade do conhecimento em geral. Desse modo, a teoria do conhecimento seria mais abrangente, de modo até incluir a epistemologia como uma de suas divisões; enquanto que a epistemologia se restringiria às especificações internas do conhecimento científico. É claro que a epistemologia acaba interagindo com essas três instâncias: a inteligibilidade científica, a teoria do conhecimento e a filosofia da ciência, demarcando maiores ou menores participações dependendo das perspectivas a que se persegue. 

Propriamente, a Teoria do Conhecimento é um campo atual, pois “Historicamente, nem na Antiguidade grega nem na chamada Idade Média, nem em nossa cultura, há propriamente uma disciplina autônoma que se possa considerar como sendo a Gnosiologia, embora os temas gnosiológicos estivessem presentes desde os gregos, sobretudo no período crítico dos sofistas, e em todos os momentos dramáticos da filosofia” (SANTOS, 1969, p.31). Na Escolástica, dá continuidade o mesmo autor, há algumas tentativas de abordagens de temas gnosiológicos na Lógica Maior – a qual gerou a distinção clássica de Lógica Maior e Menor –, mas é na modernidade, com Locke, que se pode dizer que uma teoria do conhecimento se configura enquanto tal: “Locke considerado, historicamente, o fundador dessa disciplina com sua obra ‘An essay concerning human understanding’, em 1690, onde pôs em discussão o problema do conhecimento”. 

Por outro lado, na filosofia continental, “Muitos consideram que é propriamente com Kant, em sua ‘Crítica da Razão Pura’, que a Gnosiologia se estruturou numa disciplina autônoma...” (SANTOS, 1969, p.31-32). Seja como for, mesmo com um aparecimento consideravelmente recente, sua gênese remonta à gênese da própria ciência no século XVII. De acordo com Dutra (2010), algumas obras podem ser lembradas como “precursoras” do sentido contemporâneo da epistemologia, a saber: Ensaio sobre o entendimento humano (Livro IV) – Locke[3], Novos ensaios – Leibniz, Discurso preliminar à enciclopédia – D’Alembert, Filosofia do Espírito Humano – Dugald Stewart, Curso de filosofia positiva – Comte e Discurso preliminar ao estudo da filosofia natural – John Herschel. 

Com Fichte, sucessor imediato de Kant, a teoria do conhecimento aparece, pela primeira vez, como “teoria da ciência” (HESSEN, 2003) e com Schelling e Hegel a amálgama de teoria do conhecimento e metafísica ganhará livre curso, mas não só nestes como também em Schopenhauer e Hartmann. É somente com o Neokantismo da segunda metade do século XIX que “esforça-se por separar nitidamente o questionamento metafísico do epistemológico. No entanto, o problema epistemológico foi tão vigorosamente empurrado para o primeiro plano que a filosofia corria o perigo de reduzir-se à teoria do conhecimento” (HESSEN, 2003, p.15).

De modo geral, argumenta Dutra (2010, p.09-10), “O período que compreende os trabalhos dos racionalistas continentais europeus, de René Descartes a Immanuel Kant, e também da tradição empirista britânica, de Locke, Berkeley e Hume, constitui aquele em que surgiu e se consolidou a epistemologia [teoria do conhecimento] como disciplina filosófica...”; e a tendência geral é “... identificar a epistemologia apenas com o trabalho de elaborar teorias do conhecimento (e da justificação), e de tomar as teorias da investigação como assunto ou da filosofia da ciência, ou da metodologia científica...” (DUTRA, 2010, p.10).

Referências

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BLACHÉ, R. A epistemologia. Lisboa: Presença, 1975.
DUTRA,L. H.de A.Introdução à epistemologia. São Paulo: Unesp, 2010.
HESSEN, J.Teoria do Conhecimento. 2ed. São Paulo: Martins Fontes,2003. 
SANTOS, M. F. dos. Teoria do Conhecimento (Gnosiologia e Criteriologia). São Paulo: Logos, 1960.
ZILLES, U. Teoria do Conhecimento e teoria da ciência. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008.

__________
[1]A palavra epistemologia, que significa literalmente teoria da ciência, só recentemente foi criada [...] Segundo o Dicionário de Robert, o seu aparecimento nos dicionários franceses data de 1906, no suplemento do Larousse ilustrado. Cf. BLANCHÉ, 1975. 
[2] Argumenta Zilles (2008, p.36): “a ideia tradicional é que a teoria do conhecimento, como disciplina filosófica própria, opõe-se à ideia de metafísica. Para isso não faltam exemplos da história da filosofia...” 
[3] Cf. An Essay concerning Human Understanding, publicado em 1690.

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